Vamos viciar as crianças?
"Me filma lendo uma poesia de Drummond!”, diz Luiz, de 11 anos. “Tia,
escrevi um livro, escrevi um livro!”, grita Henrique, de 12. “Você vem
no nosso evento hip-hop, só de meninas? É o ‘Pronto Falei’. Somos as
‘Ladies’. Vou te mandar o ‘flyer’ por e-mail”, fala Mariana, de 16 anos,
olhos verdes de gata, faixa de bolinhas brancas nos cabelos, com o
notebook no colo.
Crianças e jovens nas comunidades de Manguinhos e da Rocinha, no Rio de
Janeiro, estão viciados. Em livros, computadores, filmes, peças, shows,
capoeira, dança, música, horta, culinária. Tudo de graça nas
bibliotecas-parque do Rio. Para quem aposta na vida e no conhecimento. É
um vício que contamina suas mães e seus pais, entra no sangue e muda a
forma de ver, refletir e atuar no mundo. Emociona qualquer um disposto a
enxergar o outro lado do muro da vergonha, do crack, da violência e dos
fuzis.
As bibliotecas-parque no Rio são espaços coloridos de sonho e
tecnologia, com acervos de dar inveja a faculdades e livrarias
tradicionais. Acervos comprados pelo Estado e não doados. A da Rocinha
foi inaugurada em junho passado, numa antiga clínica clandestina de
aborto. Recebe 370 pessoas em média por dia. Tem 10 mil livros e 555
DVDs. Até agora, emitiu 1.879 carteirinhas, recebeu 3.754 consultas e
emprestou 4.912 livros e filmes.
A de Manguinhos, a primeira do Brasil, abriu as portas em abril de
2010. Antes, era um galpão desativado de suprimentos do Exército, junto a
uma praça ocupada por traficantes. Ganhou um prêmio na Bienal do Livro
de 2011. Em dois anos e meio, recebeu quase 160 mil pessoas. Conta 105
mil consultas, 36.338 empréstimos e 5.230 carteirinhas. Tem um acervo de
26 mil livros e 1.205 DVDs.
Os números impressionam quem acha “biblioteca” uma coisa elitista,
ainda mais em comunidades carentes de tudo, até de esgoto. O mais
surpreendente é o conceito desses laboratórios culturais vivos, a
sofisticação dos equipamentos e as instalações de Primeiro Mundo.
Em Manguinhos, bem ao lado da “Faixa de Gaza” de onde foram removidos
há duas semanas dependentes de crack, vi um menino chegar só de bermuda,
parar na porta e vestir a camisa para entrar sem ser advertido. Eles
respeitam as regras. E se sentem respeitados, valorizados. Na Rocinha,
onde uma instalação de pastilhas giratórias na parede conta, de maneira
lúdica, a história da comunidade, uma das placas brancas faz a pergunta:
“Qual a pessoa mais importante que já visitou nossa biblioteca-parque?”
Viramos a placa e a resposta é...um espelho.
Nos jornais e na televisão, o que dá ibope são as prostitutas infantis
da Rocinha, as refinarias de droga em Manguinhos e no Jacarezinho. Não
interessa saber que a equipe da superintendente de Leitura e
Conhecimento do Estado do Rio, Vera Saboya, é convidada a contar nossa
experiência aos bibliotecários de Washington, Paris e Bogotá. Ninguém
divulga que a Royal Shakespeare Company, da Inglaterra, envia
representantes ao Rio para laboratórios de arte cênica com alunos e
professores nas bibliotecas-parque.
“A gente não faz educação formal, não somos escolas”, diz Vera. “Mas
estamos desenvolvendo novas formas de educar crianças, jovens e adultos
através da arte e da inclusão digital. Sem preconceito com o leitor, com
sua classe social, se estuda ou não, se é operário, se chegou ou não à
universidade. Ele encontra aqui de tudo – de livros sobre a Grécia
Antiga até o best-seller mais vendido. Qualquer um deveria ter acesso a
todo tipo de conhecimento, do popular ao erudito.”
A secretária de Cultura do Estado, Adriana Rattes, diz que foi
proposital chamar os centros culturais de bibliotecas. “Num país onde se
lê tão pouco, não há nada mais revolucionário e inovador do que
investir em algo assim. Chamamos de Biblioteca, com letra maiúscula.” E é
um “parque”, para mostrar que a aventura do conhecimento pode se dar
num espaço propício ao encontro, à troca, ao prazer e ao lazer.
“O que dá gosto aqui”, diz Adriana, “é ver namorados, ou pais com
filhos, ou crianças com avós frequentando a Biblioteca aos sábados e
domingos, com seus saraus de poesia, cineclube, desfiles de moda e
grupos de teatro.” A próxima biblioteca-parque será no alto do
teleférico do Complexo do Alemão.
Como jornalistas, aprendemos a máxima de séculos atrás: “Notícia é tudo
aquilo que alguém não quer ver publicado; o resto é propaganda”. Somos
treinados para a investigação do malfeito, para a denúncia da
contravenção. Numa semana como esta, de onda de violência em São Paulo, é
um privilégio “denunciar” o bem. Ganhei o dia como testemunha ocular
desse outro lado do muro, pouco atraente à mídia. Vamos viciar nossas
crianças num mundo melhor porque elas merecem.
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